Gomide e a Internet: ferramentas, competência e muita vontade
Por Mariana Passos
Edição: Greice Munhoz
Alberto Courrege Gomide é bacharel (1972) em Engenharia Elétrica
pela Modalidade Eletrônica na Escola Politécnica da Universidade de São
Paulo, mestre em Matemática Aplicada pela mesma instituição (1981) e,
atualmente, professor do Instituto Sumaré de Educação Superior.
Com
experiência na área de Engenharia Elétrica, com ênfase em Circuitos
Eletrônicos, Gomide atua em redes de computadores e sistemas
operacionais desde 1973.
Alguns anos depois, trabalhou na PRODESP e,
em 1979, foi funcionário da CESP e analista coordenador e supervisor da
Universidade de São Paulo.
Em 1988, na Fundação de Amparo a
Pesquisa do Estado de São Paulo, entre outras atribuições, Gomide foi
Gerente de Informática no Centro de Processamento de Dados e, junto com
a equipe, participou de uma das maiores contribuições da Fundação: a de
trazer a Internet para o Brasil.
Faziam parte desta equipe,
Joseph Moussa e Demi Getschko, considerados peças-chaves nesse
processo. A convite do Projeto NARA, os três se reuniram nesta
entrevista para relembrar os velhos tempos.
1 - Como o Sr. descreveria o nascimento das redes no Brasil?
Gomide: As idéias de rede nasceram na década de 1960, nos Estados Unidos,
mas não chegaram aqui durante muito tempo. Lembro que eu acabei
assistindo um curso sobre redes em 1975, no Rio de Janeiro, dado pelo Leonard Kleinrock . O Kleinrock foi quem projetou a Arpanet,
que foi a precursora de todas as redes que existem até hoje. E eu fui
lá neste curso de uma semana, assistir, ouvir, falar de TCP-IP, de
pacotes, de redes.
No entanto, esse conhecimento prévio não adiantou de nada, porque não se conectava com a nossa realidade. Era algo dissociado de qualquer coisa que fizéssemos no Brasil.
Nós só fomos pensar em alguma conexão de computadores aqui no Brasil no início da década de 80.
Tudo começou com o Professor Oscar Sala. Ele precisava conectar a Física de alta energia no Brasil com a Física americana, para que eles pudessem fazer projetos em comum e gerenciar projetos à distância. A partir dessa necessidade, o Prof. Sala entabulou todas as negociações necessárias para conectar os computadores da FAPESP (onde ele era o presidente do conselho), com Illinois, no Fermilab. E essa foi a semente de todas as redes que vieram a nascer aqui no Brasil.
2 - Qual foi a sua participação nesse processo?
Gomide: Na verdade, eu fui simplesmente o sujeito que
costurou a ponta técnica do lado de cá. Tinha o pessoal americano que
nos passava as especificações técnicas e a gente fazia a implementação
disso.
3 - Qual foi a sua primeira experiência com a Internet?
Gomide: A primeira experiência com a Internet foi a do
Joseph. Ele que "botou o plug na tomada". Antes do Joseph não havia
Internet, eu saí de férias e quando voltei pra FAPESP a Rede já estava
funcionando a todo vapor.
Era a todo vapor, 4800 bps. A gente conectava de casa a 300 bauds. Antes disso, trabalhávamos só com a Decnet*, era uma coisa tão melhor que a Internet, que até hoje eu lamento muito que tenha acabado.
* Era a rede proprietária da empresa Digital.
Demi: Ele combinou a conexão Internet, só que para poder fazer funcionar, faltava um software, que chegou no meio das férias do Gomide, o Multinet. Aí o Joseph desempacotou aquilo, pegou as fitas, que eram aquelas dectapes, instalou no VAX, da Digital, e conseguiu rodar o software e testar os primeiros pacotinhos. O Joseph colocou aquele software que faltava no ar, e funcionou. Eram as férias coletivas da FAPESP, em janeiro de 1991. Primeiro começou a Decnet com Bitnet e depois HepNet. Nós tínhamos uma máquina que não agüentava Bitnet em modo nativo, porque não éramos IBM, e sim Digital. A gente até queria IBM, mas não deixaram colocar.
4 - O que você achou dessa mudança na época?
Gomide: Pra falar a verdade eu não vi muita diferença na
época. A Decnet era tão completa quanto a própria Internet. A única
diferença real é que todos os meios passavam a ter aquela cara padrão
da Internet. Do ponto de vista da Internet, se você considerar que não
existia nem ao menos a idéia de WWW ou de hipertexto, todas as
possibilidades de conexão com outras máquinas eram praticamente a mesma
coisa que tínhamos com a Decnet.
A única mudança que houve nessa ocasião foi a efetivação do domínio .br para os e-mails.
Demi: Você já usava os domínios no UUCP*.
Gomide: Sim, mas eles saíam de uma maneira estranha, apareciam aquelas informações de roteamento indireto. Agora, naquela época, a gente teve muita sorte de trabalhar com a tecnologia da Digital e não da IBM, porque a tecnologia da IBM impossibilitaria a entrada na Internet.
* Protocolo em desuso. Ainda é usado em linhas de navios.
5 - Por quê?
Gomide: Porque na IBM não tinha ninguém que tivesse feito o
transporte do software que era usado na Internet, que era do tipo UNIX.
Ainda por cima o software da IBM era absolutamente proprietário. Já a
Digital trabalhava com um sistema operacional que era mais ou menos
parecido com o UNIX, e muita coisa do UNIX tinha sido inspirada pelo
pessoal que usava VMS. Então os dois softwares interagiam de uma
maneira bastante razoável. Eu acredito que nós tivemos bastante sorte
nesse ponto, porque quem trabalhava com máquinas IBM em cima de links
Bitnet, acabou demorando muito mais para conseguir entrar na Internet.
Nosso pioneirismo, aí, foi uma questão só de estarmos no lugar certo, na hora certa, com as ferramentas certas.
Demi: Só um detalhe pra entender melhor a complexidade disso. O jeito certo de conectar a Internet seria usar uma caixinha externa, que a gente só conseguiu um ano depois, e ainda emprestada, um roteador. Na verdade, o software, que o Joseph tinha instalado e que o Gomide especificou para comprar, conseguia fazer jumper, usando uma interface serial comum do Digital. Seria mais difícil fazer isso com a IBM. Podia-se usar uma interface da máquina e ligar diretamente na linha Internet sem um roteador no meio.
6 - O Sr. disse que um ano depois conseguiram o equipamento?
Demi: Sim, um equipamento da Cisco, acredito que o primeiro roteador que apareceu no País. Como era o nome dele? IGS*.
* Doado para o Museu da UNESP.
7 - Qual foi a sua principal contribuição para o desenvolvimento da Internet no Brasil?
Gomide: Como eu disse, minha principal contribuição foi estar no lugar certo, com a ferramenta correta, naquele instante...
Demi: Na verdade, a conexão dependia da competência do Gomide em especificar, desenvolver e instalar o software. Quando eu fui para a FAPESP e tivemos uma reunião com o Prof. Sala, na intenção de conectar a Rede, falei pra ele que se trouxéssemos o Gomide, poderíamos garantir a conexão. Então o Prof. Sala pediu que fôssemos buscá-lo e, com o Gomide lá, a coisa começou a andar. A FAPESP estava bem servida de profissionais.
Gomide: Tudo aquilo que a Digital disponibilizava nos fez perceber que muito antes de nos conectarmos na Internet, a gente podia implementar o domínio ".br", utilizando apenas os softwares da Digital, fazendo a conexão acima do Decnet e interoperando com a Internet. Depois que nós registramos o domínio ".br", ali na FAPESP, o processo foi mais ou menos automático. Nós passamos a gerenciar o domínio ".br" e tínhamos que sair correndo pra fazer a coisa funcionar e transportar isso para todas as outras universidades.
Em suma, tínhamos um time muito bom, bastante competência técnica, mas tivemos também muita sorte de estar em um lugar onde havia capacidade de investir (porque a FAPESP tinha condições de investir) e a vontade política do Prof. Sala. Naquela época, se não fosse por ele, muita coisa não teria acontecido.
8 - Que impactos essa conexão trouxe para o Brasil?
Gomide: Ela já trouxe um impacto bastante apreciável, mas não
chegou a trazer todos os impactos que poderia. A Internet, quando
estiver efetivamente associada à mobilidade do celular e ao alcance de
todos, vai ter um impacto muito maior, vai começar a ser, de fato, uma
verdadeira rede de troca de informações. Quanto à vantagem que a gente
tem com a Internet, a meu ver, é o acesso a uma espécie de memória
coletiva, tudo o que você sabe está armazenado em algum arquivo e você,
através de sites de pesquisa, consegue acessar um grande "repositório
do conhecimento da humanidade", com muita rapidez e velocidade. No
entanto, hoje em dia, a gente só faz isso quando está em casa ou
sentado no trabalho. Será excelente, por exemplo, quando pudermos fazer
isso de qualquer lugar.
9 - O que mais a rede proporcionou?
Gomide: Essas redes de computador provocaram mudanças até no
relacionamento entre as pessoas. Permitiram, por exemplo, que os
desentendimentos fossem muito mais acirrados. Imagina você discutir por
carta? Você escreve os desaforos, coloca no correio. Um mês depois a
outra pessoa lê, escreve outros desaforos. Quando chega pra você, o
assunto já foi até esquecido. No entanto, com um e-mail, a resposta é
quase instantânea.
Demi: O e-mail é um ponto intermediário entre a correspondência escrita, a carta e a telefonia. Ele não tem a formalidade que uma carta tem, e não tem a transmissão de emoção que tem uma chamada de voz. Então você lê um texto, acha que é irônico, e "fica louco da vida", o que pode gerar uma resposta errada e, provavelmente, o texto queria dizer algo completamente diferente do que você interpretou.
10 - Como se deu o surgimento da Rede ANSP?
Demi: Nós tivemos uma apresentação formal da ANSP com a presença do governador em 1989 na Comdex, em São Paulo.
Gomide: Você se lembra que a "constituição" da ANSP ocorreu mais ou menos no fim de 88, porque a ANSP era parte do Hepnet? Outro fato importante, que podemos dizer que foi uma enorme sorte, é que o LNCC – Laboratório Nacional de Computação Científica (www.lncc.br) do Rio, entrou como nó da Bitnet, e a Bitnet decretou que não aceitaria mais "nodes" em países estrangeiros, só poderia aceitar redes. Então nós, aqui na FAPESP, queríamos entrar na Bitnet e saímos à caça para constituir uma rede. A primeira idéia era formar essa rede com o nome de SPAN – São Paulo Academic Network, mas já havia um SPAN dentro da Hepnet, da NASA. Por isso, tivemos que mudar o nome. Lembrando que a ANSP é "an Academic Network at São Paulo".
A ANSP quase não saiu, porque a gente pensou que ela deveria existir em todos os estados. Aí ficaria ANRJ, ANRG, e assim por diante. Foi um intervalo muito curto entre o LNCC ter se constituído como "node" da rede Bitnet e nós fazermos o nosso pedido formal de nos tornarmos um nó; e eles disseram: "sinto muito, mas nós acabamos de divulgar uma decisão de que não vamos mais ter "nodes" fora dos Estados Unidos". Por isso tivemos que constituir a ANSP como sendo uma entidade formal, uma "rede que cooperasse" à Bitnet.
Demi: Quando nós registramos o ".br", tivemos a ajuda de um pesquisador estrangeiro responsável pela Bitnet. Ele colocou o ".br" como Bitnet, porque nem sabíamos da Internet. A gente não tinha idéia da proporção que podíamos alcançar, na época a Internet era menor que a Bitnet. A Internet começou a vingar depois, tanto que todos os ListServers migraram pra lá.
11 - E quanto à operação da ANSP?
Demi: A operação da ANSP estava na FAPESP, nós contratamos todas as linhas do backbone. A gente não tinha um know-how
específico, mas coordenação de integrações, a iniciativa, a necessidade
de trabalhar. A gente dava braços para a RNP, porque "bocas tinham
muitas, mas braços, poucos". A operação foi para a USP e, mais tarde,
para Campinas e Rio de Janeiro.
12 - Na sua opinião, quais são as diferenças fundamentais entre as redes acadêmicas e a Internet?
Gomide: A Internet é de propósito absolutamente geral e,
dentro desse propósito, as redes acadêmicas foram feitas exclusivamente
para você poder colaborar em projetos científicos. Para isso, você
precisa de muito mais banda passante do que um usuário normal da
Internet. O uso acadêmico exige e sempre exigiu uma banda passante
muito maior do que a comercial disponível, e essa é justamente a base
do projeto KyaTera, disponibilizar capacidades de interação suficiente
para que os projetos científicos consigam ter domínio.
13 - Quais perspectivas o Sr. vê para o futuro da Internet?
Gomide: Imagine quando efetivamente todos os cidadãos
possuírem acesso a essa mobilidade do celular com a interface de voz,
interagindo com a Internet em tempo real. Aí sim poderão ter um acesso
completo a todo o conhecimento global da humanidade em tempo recorde,
algo que já é prometido há 20 anos.
Se nessa entrevista nós tivéssemos um acesso móvel a todos os meus arquivos em casa, o subsídio seria imediato para decidir em qual universo aquilo aconteceu.
14 - Que tendências tecnológicas o Sr. considera relevantes para a sociedade neste momento?
Gomide: Eu acho que a grande tendência da tecnologia é mesmo
a mobilidade. Você não precisar pensar em nenhum terminal fixo. Não tem
porque você chegar em casa para assistir televisão e ter o seu receptor
de satélite grudado na casa. O receptor de satélite da sua televisão
será o seu celular, você chega em casa e "pluga" o seu celular na tela.
Assim você assiste o seu canal particular, com todas as suas
preferências. Em qualquer lugar você acha uma tela em que você possa se
"plugar". Todos os seus arquivos estarão armazenados na Internet. Vai
deixar de ter sentido você ter um disco em casa e outro no trabalho,
sem que você consiga fazer suas informações serem coerentes aqui e lá.
Na verdade essa idéia explodiu de uma forma fantástica agora e várias empresas estão investindo nessa área.
À medida que a velocidade aumenta, que a banda de conexão aumenta, aliada a algumas outras inovações que estão faltando, tal como reconhecimento de voz - como eles dizem, "any minute now", isso aí vai gerar cada dia novas revoluções, assim como foi a da Internet.
Agora a gente sai da era da informação espalhada, para a era da informação globalizada. Esse é o grande futuro desse planeta.
Lembrando que a Terra pode se super-aquecer antes que essa tecnologia seja alcançada.
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por Mariana Passos
Última modificação
26/05/2008 15:35
texto originalmente publicado em:
http://www.nara.org.br/entrevistas/precursores-da-internet-no-brasil/alberto-gomide-e-a-internet-ferramentas-competencia-e-muita-vontade/
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